segunda-feira, 5 de abril de 2010

Culto ao absurdo

Passei grande parte da minha infância e adolescência na igreja evangélica, e estudei no zoológico colégio adventista. Quando bebê, fui consagrado ao Senhor, e aos 13 anos, fui batizado nas águas. Passei uns 8 anos da minha vida inserido nesse universo. Ponto. Depois de mais de 6 anos sem pisar em uma igreja evangélica, motivações pessoais me fizeram voltar em uma, ontem. "Eis o inferno!" (QUIXOTE, 2009).
Foi uma experiência e tanto. Dessa vez, tive um olhar artístico sobre a coisa, e fiquei muito tentado a deslocar certos aspectos para a cena. Vou tentar elencar algumas imagens que experienciei.

-Momento do louvor. Ficamos de pé durante muito, muuuito tempo. As pernas começaram a cansar (e tem uma cadeirinha bem atrás!). Durante boa parte do tempo, permanecemos com as mãos erguidas, e os braços começaram a doer. Em dado momento, a banda toca uma música mais "animadinha" (uhul!). Algumas pessoas arriscam um discreto embalo corporal... Aí uma coisa me chamou atenção: Os obreiros. Eles eram muitos, uns 15. Um coro. Todos vestidos de forma padronizada, com roupa social e gravata (por quê?). Estavam de frente pra platéia, CURTINDO a música! Com a maior cara de "esse som é mó legal", fazendo passinhos, quase como se estivessem numa boate. Oi?

-Adoração.  Aqui, tive uma experiência de sensações sonoras muito interessante. Todos estávamos em pé, de mãos erguidas, e olhos fechados, num momento de adoração, e de oração, de pedir coisas, louvar, etc. Chegou uma hora que a música parou de tocar, e só se ouvia o som das pessoas orando (transição muito interessante, estética e dramaticamente). Mas não oravam baixinho, como em algumas igrejas católicas. Oravam como se Deus estivesse no meio de uma feira, a 10 metros de distância. Clamavam, choravam, gritavam. Foi meio assustador. Em alguns momentos eu abria os olhos discretamente, e percebi que os obreiros estavam andando no meio das pessoas, e em algumas, eles seguravam a cabeça, e gritavam "SSSSSSSSSSSSAI!". Fiquei num momento de suspense, pois se algum obreiro percebia que eu estava de olho aberto, me olhava com reprovação. Fiquei lá, de olhos fechados, no meio daquele som todo de gente gemendo, chorando e gritando, e podia praticamente sentir quando um obreiro passava do meu lado, na expectativa de ele fazer o "sai" em mim. Lembrei do zoológico. Blackout.

-O Filho Pródigo. Quando já podíamos ficar sentados (ufa!), o pastor começou a falar sobre o filho pródigo (um filho que sai de casa, mas fica pobre, miserável, volta pra casa de cabeça baixa, e o pai o acolhe e faz uma grande festa). Acho interessante a habilidade que os pastores têm de manipularem discursos. Através da estória do filho pródigo, ele praticamente dizia "Você pode ser esse filho, então, tá esperando o que? Venha para a casa de Deus você também!", enquanto, a meu ver, poderia também tomar uma série de interpretações diferentes. Enfim. Ele resolveu fazer uma pequena encenação. Dizia "e o pai viu o filho, láá longe...", aí mandou um obreiro ir pro outro lado da igreja, como se fosse o filho. Depois chamou outro obreiro, pra ser o pai. Aí todos vimos o filho, lá longe. E o pastor descrevia: "Ele estava descalço...", e o obreiro, muito espontaneamente, tirou os sapatos. Continuou: "estava sem roupas... mas epa! não vai tirar a roupa porque esse negócio de strip-tease é coisa do Diabo! Tá amarrado, hem! Rs". E perguntou: "e quando viu o filho, o que o pai fez?". Aí o obreiro que fazia o pai atravessou a igreja correndo loucamente, e deu um abraço muuuito apertado e demorado no filho, e ficaram lá, se abraçando, enquanto o público aplaudia, entusiasmado. O pastor continuou o seu texto, e quando nos demos conta, o obreiro que faz o pai volta para seu lugar com o obreiro que fazia o filho nos braços, como se fosse uma noiva. Hã?

-As ofertas. O pastor foi muito franco, disse que não tem nada a esconder de ninguém, e que não tinha que pedir pouco dinheiro das pessoas, e sim muito, pra multiplicar a obra do Senhor. Explicou que a igreja tá com um projeto de conseguir 7 mil pessoas que possam dar a oferta de MIL reais. Nesse dia, a igreja não estava cheia, então ele chamou quem poderia dar essa quantia, e ninguém se manifestou. Então diminuiu: 500!, e uma mulher foi lá. O esquema era o seguinte: a pessoa não dava o dinheiro na hora. Ela recebia um anel dourado, com um envelope, aí dava os dados pessoais pra um obreiro, e se comprometia a ir dia tal com a grana. Então o pastor continuou: 300!, 200!, até perguntar quem tinha "Cenzinho" pra oferecer (eu tava esperando a hora de ele falar "Dou-lhe uma..."). Aí ele foi baixando, até chegar nas moedinhas. Então, uma galera foi lá pra frente, pra entregarem suas ofertas. Então, a melhor parte! O pastor mandou os obreiros carregarem caixas de som, pra fazer tipo um altarzinho, e se deitou de bruços; com  o tronco sobre as caixas, e as pernas e cabeça pra baixo, segurando o microfone perto da boca, enquanto as pessoas (enfileiradas atrás de seu traseiro) iam deixando os envelopes nas costas dele, e voltando aos seus lugares. Minha imaginação fertilmente maldosa logo pensou: "Curra!". Ok, retém.

-Os testemunhos. Durante as orações, o pastor sempre lembrava de expulsar os demônios das doenças. Aí ele listava um monte: "o demônio da artrose, o demônio da pedra no rim, da osteoporose, da inflamação na vesícula, do traumatismo na coxa, da anemia, o demônio da diabetes (rá! eles adoram as diabetes), o demônio da gastrite, da leishmaniose, ó meu Deus, o demônio daquele braço que não levanta mais, daquele pé que não estica mais, o demônio do torcicolo, Senhor...". Enfim, esses pastores têm gravada uma lista infindável de enfermidades. E chegou o momento do culto de as pessoas darem seus testemunhos. O pastor chamou ao palco quem recebeu milagres nessa última semana. Foram várias pessoas, umas dez, compartilhar suas bênçãos. Todas elas usaram produtos da igreja: a água ungida e uma espécie de toalhinha (minha mãe chegou a me fazer beber dessa água ungida, enquanto expulsava supostos demônios que habitariam meu corpo...). E começaram os testemunhos. Gente que curou neto, filho, sobrinho, afilhado e tudo o mais, com as benditas toalhinhas e a água. Mas teve um detalhe: ninguém viu eles falando, porque havia um sujeito com uma câmera de tv, de costas para o público, gravando os depoimentos para serem transmitidos para todo o Brasil. O pastor, no meio das entrevistas, sempre arrumava um jeito de exaltar os detalhes mais interessantes olhando para a câmera. Me senti desprestigiado enquanto espectador.
 
-Eu. Enquanto ser, eu, ali, era a manifestação do deslocamento. A própria igreja, por si só, é absurda, por deslocar elementos de outras esferas e trazê-los para dentro daquele ritual, de roupagem altamente comercial. Mas eu, deslocado de meus ambientes cotidianos, colocado ali dentro, exercia absurdo contraste. Enquanto todos oravam em voz alta, de forma aleatória, eu, no proveito de não ser ouvido, falava em voz alta qualquer bobagem, que não tivesse nada haver com o culto, como "Olha a pamonha, pamonha!", ou "Socorram-me, subi num ônibus em Marrocos!". Foi uma experimentação interessante.

Creio que a igreja tem muito de incomunicabilidade, de sistema capitalista, de modernidade, de máquina, shopping center, zoológico, medo do silêncio, cotidiano e sentidos. Durante o culto, tive várias imagens. Preferi, aqui, não me ater a elas, já que o nosso propósito é primeiramente identificar o banal, para somente depois fazer os devidos deslocamentos - além do que, a igreja, por si só, já me parece absurda. Mas acho, por exemplo, que a imagem dos obreiros dialoga com o visual de figurino proposto, de terno e gravata; acho que podemos aproveitar a coisa da oferta pra pedir dinheiro do público; acho que podemos tomar um pouco emprestado o caráter espetacular dessa linguagem; e acho, entre muitas outras coisas, que esse shopping center, que vira zoológico, que vira várias coisas, pode virar, em dado momento, uma coisa de estrutura parecida com a da igreja evangélica.

Um exemplo. Faz algum tempo que fui convidado para uma reunião de trabalho na HerbaLife. Não aceitei o convite de trabalho, mas fiquei abismado com o que vi. Lembrei dos tempos de igreja. O que se faz lá, ritualisticamente, se parece demais com um culto evangélico. A retórica dos empresários, os "testemunhos", o entusiasmo, as propagandas... A estrutura espetacular é bem parecida. Mas nesse caso, o culto é feito ao corpo e ao dinheiro. Absurdo?

Acho interessante, porque a HerbaLife (na minha cabeça), pega a igreja evangélica, que por si só já é uma miscelânia absurda de deslocamentos, e a desloca pra dentro de si, subvertendo COMPLETAMENTE o sentido da mensagem. Acho que isso se enquadra no que propomos: um "sutil" deslocamento, que provoca uma bizarrice do tamanho do mundo.

Um comentário:

  1. Li. Absorvi. Digeri. Gostei.
    Algo a pensar. (Bem da pedagogia absurdiana de assimilar coisas e consumí- las a contra gosto).
    Abço

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