domingo, 11 de abril de 2010

Vírus

Trago aqui uma proposta de encenação. Na verdade, é um agrupamento de visões que tenho, partindo de trocas com colegas da equipe, nesse princípio de trabalho. Sei que sou precipitado, que ainda é cedo pra estabelecer certas coisas, mas acho importante expressar essas idéias que aparecem, mesmo que a título de registro.

1- A peça inicia do lado de fora do teatro. Todos os atores formam uma imensa fila, praticamente acampados, como se já estivessem ali há dois dias. O público é obrigado a formar a fila, a partir do final dessa. NOTA: dá pra perceber que os atores estão ali há muito tempo, mas eles não parecem se abater nenhum pouco com isso.

2- Quando o público entra, depois dos atores, estes ocupam todas as cadeiras, obrigando as pessoas a ficarem no palco. Os atores riem debochadamente.

3- Uma tela se acende (penso numa espécie de estandarte, bem alto, fixado no chão com a projeção feita num tecido branco esticado lá em cima), com a imagem de um ser alegórico, que representaria a voz do sistema que aprisiona o homem. O ser ordena que os operários iniciem o trabalho, então todos se levantam, e dão o espaço para a platéia.

NOTA: Esse ser, do telão, é quase um deus, um supremo vigilante, ao qual todos servem e obedecem. Porém, eu não imagino, para representar isso, uma imagem grandiosa, como um ser exuberante e complexo. Isso seria, de certo modo, óbvio. A idéia é retratar a condição humana pelo viés do absurdo, ou seja, os homens aprisionados por alguém que não é inteligente, muito menos humano, e ao mesmo tempo é o próprio homem. Sugiro então um sutil deslocamento: a imagem do cachorro (criatura domada pelo homem no cotidiano) como representação daquilo que faz o homem ser domado pelo próprio homem. Essa inversão (a humanidade domada por um cachorro) caracterizaria a vida humana como algo ridículo e irracional. Obs.: O cachorro filmado mastigaria chicletes e seria dublado.

4- A peça "inicia". Estamos no interior de um Shopping Center, que ainda não abriu as portas. No telão, a imagem do cachorro é substituída pela de um cronômetro, em contagem regressiva, como uma bomba-relógio. Temos, em cena, apenas um personagem: o faxineiro do shopping. Com uma atmosfera de musical da Broadway, ele canta afinadamente e dança com sua vassoura (em algum momento podem vir atrizes-dançarinas, para fazer coreografias com os guarda-chuvas). NOTA: A idéia, aqui, é dar ao espectador a idéia errada do espetáculo: ele se prepara para morder o hamburguer, e nós o tiramos de suas mãos, e o substituímos pela carne crua.

5- No ápice da cena, o cronômetro chega ao 00:00:00, e ouvimos sons de sirene, e muito barulho. São as portas do shopping se abrindo. A imagem do cachorro volta a ser exibida, e ele convoca as pessoas a gozarem, se entreterem e se deliciarem com promoções quentíssimas. O elenco entra em cena de forma organizada, como se tivessem sido adestrados.

6- A partir de então, o espetáculo fará um "passeio" por esse shopping. Incluiremos elementos obtidos por meio da criatividade de nosso elenco, em um processo dramatúrgico colaborativo. Compradores e produtos se confundem, em diversas situações relacionadas à desejos, prazeres e obsessões por coisas ridiculamente desnecessárias. É importante evocar, aqui, o ambiente de propaganda, na interpretação dos atores, nas falas, nas músicas, mas ainda não no vídeo. Acho que o vídeo ainda vem no sentido contrário: se no teatro tenta-se convencer de que produto X é super legal, no cinema vemos que na verdade, é o oposto. E mesmo assim, no teatro, o produto continua sendo cada vez mais atraente.

NOTA: O faxineiro passa por todos os ambientes, varrendo as coisas e as pessoas, em momentos inusitados, como se estivesse simplesmente programado para limpar o que visse pela frente. Ele é a peça defeituosa do sistema, e por onde passa, desorganiza e desloca as coisas.

7- Depois de um passeio por várias lojas, damos de cara com a placa "acesso restrito a funcionários". Uma pessoa executa, durante algum tempo, o movimento constante de se aproximar da porta, ler o que está escrito, e regressar, e repetir isso indefinidamente, sem esboçar o menor cansaço. Até que o faxineiro se aproxima e entra, varrendo tudo pelo caminho.

8- O ambiente por trás da porta é revelado. Trata-se de uma sala estranha: o coração do shopping. No seu interior, temos o cachorro, que comanda os humanos, diante de vários cinegrafistas adestrados. O faxineiro defeituoso entra querendo varrer tudo, e acaba desorganizando o sistema, fazendo o shopping entrar em colapso.

9- Temos um estrondo. O telão fica como uma TV sem sinal, e no palco, acontece um blackout. Os atores, então, fazem sons de animais, como uma manada de bichos que fogem de um zoológico. Essa situação acontece por algum tempo, pra causar desconforto e suspense na platéia. Os sons devem vir de todos os lados, surpreendendo os espectadores.

10- Com bastante interferência, a imagem do cachorro (agora com um cone no pescoço) tenta reaparecer na tela. Entre chiados, ele ordena que o antivírus seja acionado. Apesar do esforço, a imagem morre, e a tela se apaga.

11- De repente, fica silêncio. Uma luz se acende, e no palco temos apenas o faxineiro, fazendo exatamente a mesma coreografia do início do espetáculo, e mexendo a boca como se cantasse, mas sem sair som algum. Silêncio incomodativo, até que algum celular começa a tocar na platéia. Toca, toca, toca, e ninguém atende. E o ator continua os movimentos...

12- Aos poucos, temos novos pequenos estrondos, como uma rachadura que vai aumentando até se tornar uma cratera. Pane no sistema. Atores entram em cena aleatoriamente, repetindo ações das cenas anteriores, totalmente deslocadas e sem nexo algum. Gradativamente, a estrutura íntima do shopping é revelada, como um corpo que se abre para uma cirurgia. Em plano de fundo, vai sendo revelada a imagem da máquina, que vai crescendo, até se tornar gigantesca. No telão, aleatoriamente são exibidas algumas imagens distorcidas de propaganda (o estandarte pode ser tirado do lugar e incorporado ao movimento da máquina). O panorama é traçado por diálogos completaente sem nexo. O caos é cada vez maior. Na tela, volta a ser exibido o crônômetro em contagem regressiva de bomba-relógio. O tempo se esgota, e, numa pancada, a luz apaga e todo o som cessa, como uma TV que é desligada na função sleep. Fim.

Resumo: Temos um shopping-sistema, com uma peça defeituosa que faz revelar sua estrutura interior de máquina.

Um comentário:

  1. ontem, andando no ônibus, notei um paralelo, no meu imaginário, entre essa coisa do cachorro no coração do shopping, com o Mágico de Oz.

    ResponderExcluir