sexta-feira, 2 de abril de 2010

Desgovernando a língua

Escrevi esse texto em 16 de novembro de 2009, num momento de muita agonia, no qual sofria de um transtorno obsessivo compulsivo chamado tricotilomania (mania de arrancar os fios de cabelo e mordê-los), que acho que vem a calhar aqui, enquanto absurdo no que tange ao paladar. Escrevi como forma de desabafo, de modo que a partir de certo momento, o discurso perde a linha da narrativa, e passa a invadir campos de sentido aleatórios, como um carro desgovernado, que perde o controle e invade todos os quintais da vizinhança.
OBs.: a título de curiosidade, no meu caso, eu não chegava a engolir os fios. Isso aparece no texto, mas é apenas um recurso dramático, rs.
Em nome do desabafo. (Por Haroldo França)
Seus dedos são sempre inquietos. Sempre em busca de algo, seja uma tecla de computador, ou um fio de cabelo - seja do corpo ou da cabeça. Os fios de cabelo inundavam sua vida. Cresciam pelas paredes, e não adiantava mais cortá-los. Eles ressurgiam, envolvendo sua cama enquanto dormia, na tentativa de sufocá-lo. Os fios de cabelo o impediam de fechar as janelas. Estavam em suas roupas, em seus livros, em todo o lugar eles apareciam. Tentou, então, agradá-los. Deu um banho de xampu, na casa toda. Sentiu gosto de sabão na boca, e vomitou. Vomitou bolas e bolas de cabelo empapado de ácido gástrico. Tentou conviver com isso. Ia pra escola, pegava ônibus, e por onde passava, os fios de cabelo ameaçavam sair pelos esgotos ou pelas tubulações de ar. Mas sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria de voltar pra casa. E todos os dias, era uma tentativa de homicídio. Como conviver com isso? Como receberia visitas em casa? A situação foi tomando contornos cada vez mais angustiantes. Foi quando decidiu: Clínica de depilação. Custaria caro, mas o faria, para salvar o que lhe restava de vida. Foi então que suas unhas começaram a crescer numa velocidade anormal. Sbia pelas paredes enquanto exclamavam ouvidos afora o quão inflamável poderia ser uma simpática adestrada e inquieta vizinha, flamejante, explosiva, temperatura, termômetro, vento ao vento. E assim, sem mais nem menos, deu-se ao encontro de seus pensamentos no ato de escrever o quão cruel poderia ser essa insaciante, infinita e sufocante busca pelo amar, pelo amor, e pelo relacionar-se. Opção? Sabia muito bem que não poderia sê-lo. Não poderia sê-lo! Era destino cravado. Como dente de jacaré, mandíbuila, afiada, vertical, na carne, estaria, no sangue, na alma. Não sairia. Não sairia. Não sairia. Não sairia. E a cada vez que se tocava disso, era como se um novo fio de cabelo nascesse, contornasse seu pescoço e o sufocasse. o sufocasse. o sufocasse. E Escorreu! Escorrendo foi até encontrar com sua grande paixão, aquele morto sentimento de se tornar avesso a tudo o que desafia o equilíbrio na vida. E quando essa inquietação exagera, se aproxima de angústia. E que angústia é essa, tão cabeluda, de garras tao grandes, que não deix ao pobre coitado dormir? Seria humana? O palpite que qualquer ser humano poderia mencionar é o de que abóboras são feitas para serem espatifadas, desperdiçadas, e seu suco deve ser absorvido pela terra, pelos mortos, pelos micróbios, para que um dia uma manga seja digerida e nela existam milhares de sentimentos universais, que passam pelas veias de todo ser humano, que não se permitem exalar-se ou multiplicar-se em sete partes. Ou será que poderia? Eu já havia dito, certa vez, que um não é o que é aquilo que se merece ser dado ao dízimo, e amadas são as vidas outroras tão coisas escalafobéticas e verbo, verbo, verborragia desce, escorre e planta na alma um sentimento profundo de inquietude, evasão, fuga, sentimentos que explodem a flor da pele, a flor, a pele, a planta, a raiz envenenada do ser que é careca, calvo de viver, um fio de vida que se rompe enrolado no dedo e leva a morte condensada num líquido que escorre pela língua e leva a crer que tu nada mais é que um objetivo inconcreto, inalcansável, praticante herdeiro de genes híbridos que um dia darão frutos a jardins encantados na Eutanásia, o lugar de onde todos aqueles malditos fios de cabelo nunca deveriam ter saído. Eles percorrem as ruas e alcançam o surreal, o inexplicável da existência humana, do relacionar, do comunicar e dizer sempre e sempre e sempre tudo o que menos importar e dizer que na verdade o que se é não importa, o que importa é apenas aquele maldito fio de cabelo que se arranca da cabeça, o que importa é finalmente a maldita dor que eu sinto a três dias, e a necessidade de manter meus dedos ocupados, falando, comunicando, teclando, para que não retornem à minha cabeça e me façam crer que perecerei, e não terei a vida eterna.

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